domingo, 30 de dezembro de 2018

Ensaio sobre sombra e identidade de brasileiros no Japão II

Bom, parece que as pessoas gostaram post 1. Sigo aqui na minha vida de trem bala que tanto gosto e refletindo, lendo e escrevendo.
Vamos recapitular, estou fazendo um ensaio, uma reflexão e comparação de um "livrinho", que foi sucesso no século XIX, com a minha experiência no Japão.  Não tenho nenhuma pretensão de explicar as escolhas individuais das pessoas do mundo, mas trago o aprendizado que tive com a convivência pessoal com brasileiros aqui no Japão e em contato com a sociedade japonesa.
Se tem algo que o século XIX colocou na roda da sociedade foi a questão da depressão e os desejos humanos. Uia, estamos no século XXI e essa história toda de depressão e da insatisfação humana começou no século XIX? Sim leitor! Começou até muito antes, mas as definições médicas começam no século XIX. Viva o século XIX ou não...hehehe!
Contei então de um cara chamado Peter Schlemihl que recebeu uma bolsa mágica que sempre sai dinheiro mas mesmo assim ele não estava feliz. Toda vez que o Sol se colocava, ele fugia para que as pessoas não percebessem que ele não tinha sombra.
Vamos falar agora do sujeito que ofereceu a bolsa mágica. No livro, há um personagem que aparece como o sujeito do casaco cinza com poderes fantásticos. Ele realiza o desejo das pessoas. Tudo o que as pessoas desejavam, o sujeito de cinza tirava do bolso e foi ele quem ofereceu a bolsa mágica que saia dinheiro ao Peter Schlemihl. As pessoas menosprezavam o sujeito do casaco cinza, mas ele concedia tudo.
Talvez o sujeito de cinza pudesse ser as empreiteiras ou até mesmo o Japão que oferecem propostas incríveis e maravilhosas aos brasileiros descendentes para trabalharem aqui. Muitos se decepcionam e depois de um tempo trocam de fábrica ou empreiteira...muda de situação mas de fato a insatisfação continua. Muitos brasileiros menosprezam, reclamam das condições de trabalho, mas estão lá firmes sofrendo diariamente e muitos sofrem silenciosamente. Depois trocam e quando tudo parece melhorar, ainda não estão satisfeitos. Faço uma observação de que tem também brasileiros que adoram trabalhar nas fábricas e se acharam no trabalho, se identificam e vestem a camisa a ponto de defender seu trabalho com uma "alegria" que impressiona, muitos não pelo trabalho em sí obviamente, mas sim pelo retorno financeiro. Coisas do tipo, o trabalho é pesado mas paga bem. Mas tem casos de pessoas que gostam mesmo do trabalho propriamente dito e isso é muito legal também.
Voltando ao livro, antes de seguir adiante preciso falar de um cara chamado Thomas John super influente e rico que aparece no começo do livro como o cara que numa festa super glamourosa e fantástica tinha como convidado o sujeito de cinza que concedia todos os desejos mais absurdos das pessoas, tirando simplesmente do bolso. Foi nessa festa que o Peter Schlemihl conheceu o sujeito de casaco cinza. Guardem essa informação do Thomas John....vou ter que falar dele mais para frente.
Aí o que acontece? Depois de um ano em que o Peter Schlemihl sofreu e se arrependeu de vender sua sombra, eis que o sujeito do casaco cinza reaparece do nada. Aí rolou aquela situação do Peter Schlemihl:
"Meu senhor, eu lhe vendi minha sombra pelo preço dessa bolsa, em si bastante apreciável, e arrependi-me suficientemente. Será que esse negócio pode voltar atrás em nome de Deus?
A resposta do caso de cinza foi: Claro, devolvo sua sombra, basta que você assine este documento. O documento dizia que o Peter Schlemihl cederia a alma depois da separação natural do corpo. Detalhe, o documento deveria ser assinado pelo próprio sangue do Peter Schlemihl. Ele teria a sombra dele se vendesse a alma ao homem de casaco de cinza que você pode entender quem é nessa fala em que Peter Schlemihl pergunta, afinal de contas quem é você?
O homem do casaco de cinza responde: "Sou um pobre diabo, ao mesmo tempo uma espécie de erudito e físico, que por suas artes exemplares só recebe ingratidão de seus amigos e que não tem nenhum outro prazer nesta terra além de suas pequenas experiências, mas assine aqui à direta, aqui embaixo, Peter Schlemihl"
O Peter Schlemihl achou esse negócio duvidoso, como assim ter a sombra de volta se vender a alma?Mas o homem do casaco de cinza tirou a sombra dele para que ele pudesse ver e a sombra obedecia o homem do casaco de cinza sempre, muito embora o dono de verdade fosse o Peter Schlemihl.
O Peter Schlemihl pensou, pensou, pensou, pensou e não queria assinar de jeito nenhum o documento que vendia sua alma para ter a sombra de volta e continuar sendo rico. Depois desse um ano, o homem do caso de cinza não ia desistir tão fácil e ficou importunando e mostrando a sombra dele ao Peter Schlemihl. Tem uma fala do homem do casaco de cinza muito boa: "Note bem Schlemihl, aquilo que a princípio a gente não quer fazer por bem, acaba por fim fazendo-o obrigado"
Pausa para a reflexão. Eu perdi as contas de quantos brasileiros disseram que ficaria por um ano no Japão, mas que foram ficando mais um ano, mais outro, mais outro. Recomeçar no Brasil....muito difícil, já se acostumou ao Japão e com as facilidades que a vida aqui oferece. Todos os desejos materiais de quem trabalha bastante aqui no Japão, se realizam. Carro, celular, computadores, viagens, parques temáticos e mais recentemente casas. Hoje muitos brasileiros compram casas no Japão com parcelas a juros baixos que se tornam mais vantagem que alugar.
Voltando ao livro, mas então o que seria a sombra?  A identidade de cada ser humano é a sombra. A identidade é construída em casa pelos pais, pelos amigos, nas escolas e pela sociedade também. O que somos, o que fazemos, como agimos...tudo isso aprendemos com pessoas.
A identidade do Peter Schlemihl não pertencia mais a ele, mas sim ao homem do casaco cinza que aceitava devolver a sombra se fosse concedida a alma. Mas o Peter Schlemihl não poderia ficar com a bolsa de dinheiro e ficar "de boa"? Não é tão simples assim. Ele tinha que tomar uma decisão, aceitar ou não assinar o documento que entrega a alma porque o homem do casaco de cinza insistia para que assinasse logo.
Aí o que acontece? A tentação era muito grande, era só assinar o documento e pronto, a sombra voltaria para o Peter Schlemihl e ele continuaria rico, MAS o Peter Schlemihl não assinou o documento!  O homem de casaco de cinza sempre iria aparecer todas as vezes que ele mexesse na bolsa mágica de dinheiro e ele não aguentava mais ser incomodado pelo sujeito. O que o Peter Schlemihl fez? Jogou a bolsa mágica fora e ficou sem sombra e sem dinheiro.
Guardada as devidas proporções, isso pode acontecer com brasileiros aqui no Japão. Eu conheço um caso de um descendente que foi trabalhar muitos anos no Japão e que voltou ao Brasil sem nada e se arrependeu amargamente de ter "perdido" o tempo da juventude dele nas fábricas. A sedução pelo dinheiro que vem de muitas horas de trabalho extenuante causa sequelas e traz tristeza a muitas pessoas pelo que observei aqui. Muitos jovens antes de completar 18 anos já podem trabalhar no Japão, conheci um jovem super inteligente e articulado que me contava da tristeza imensa e cansaço que ele sentia por fazer algo que ele de fato não queria mesmo sabendo que estava recebendo bem por isso. Ele teve que fazer tratamento psicológico porque ele não conseguia nem falar com as pessoas, queria se isolar. O Peter Schlemihl não podia encontrar pessoas, ele se sentia mal todas as vezes que as pessoas percebiam a ausência da sombra.
Tem muitos brasileiros que não tem tempo ao outro porque estão cansados e exaustos dos trabalhos que realizam. Falta de tempo e cansaço é super rotina na vida da maioria dos brasileiros no Japão.


Mas ainda não acabou esse post leitores porque vem outras questões para reflexão:
Como a sombra se forma?
Como proteger a sombra?
Como recuperar a sombra?
Em outras palavras:
Como a identidade se forma?
Como proteger a identidade?
Como recuperar a identidade?
Ainda não expliquei o Thomas John que eu falei que era para prestar atenção.
Complicou? Vai ter que ter o post 3.

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